Comecemos pelo começo: o que é Osteonecrose da cabeça femoral?
A ONCF é uma doença articular que pode ser devastadora para o paciente, normalmente ocorre entre os 30 a 50 anos de idade. É bem comum que conforme sua evolução, a doença resulta no colapso da cabeça do fêmur e no desarranjo das articulações, o que causa uma incapacidade dolorosa que indica uma cirurgia de prótese total de quadril.
Na verdade, temos um conjunto diverso de doenças, com causas diferentes, que podem culminar na interrupção do fluxo sanguíneo para a cabeça do fêmur. Isso gera uma necrose óssea (morte do tecido), já que algo interrompeu a vascularização: seja algo mecânico, como um acidente, alguma oclusão intravascular, como microêmbolos ou compressão extravascular.
Qualquer um desses processos pode ser desencadeado por algum trauma, uso de corticosteróides ou bebidas alcoólicas, alterações nas células do sangue ou outras condições.
Vale lembrar que essa doença, também chamada de Necrose Avascular da Cabeça Femoral – avascular, pois há problema de circulação – não há a produção de pus. Por isso, ela deve ser diferenciada dos casos em que existe alguma infecção, seja ela óssea ou articular.
Um pouco mais sobre as causas conhecidas de ONFC:
– Trauma:
O trauma é bem importante na ONFC, já que um acidente pode levar à ruptura mecânica do suprimento vascular da cabeça do fêmur, por exemplo.
-Corticosteróides:
O uso de corticosteróides é a causa mais comum de ONCF quando ela não decorre de trauma, e o motivo pelo qual isso acontece ainda não é conhecido. Mas existem alguns estudos que mostram que o acúmulo de lipídios na medula óssea das cabeças femorais pode aumentar a pressão sobre elas e diminuir o fluxo sanguíneo da região. Doses de 20mg por dia de Prednisona via oral já podem causar problemas e mesmo se esse fármaco for administrado via endovenosa, tópica ou intra-articular, ele pode ser relacionado a ONCF.
-Bebida alcoólica:
Já quanto à ingestão de bebidas alcoólicas, sabemos que há quase um século foi declarado que ela tem relação com o início do processo de necrose, mas como isso acontece ainda é desconhecido.
Tirando isso, não há uma dose limite de ingestão indicada e, considerando o grande número de pessoas que ingerem bebida alcoólica e a baixa ocorrência de ONCF, desconfia-se que haja fatores genéticos ou até mesmo ambientais relacionados ao desenvolvimento.
Outra causa comum de ONCF são as alterações nos componentes sanguíneos. Como exemplo, temos a Anemia Falciforme, doença na qual as hemácias assumem formato de foice ao sair do baço. Em pacientes com essa enfermidade genética, que é mais tipicamente presente em indivíduos negros, a evolução da ONCF costuma ser mais rápida.
Outras doenças hematológicas – doenças relacionadas à produção das células do sangue – são relacionadas à necrose, como a Policitemia vera, a hemofilia ou estados de hipercoagulabilidade.
Outras causas associadas documentadas são a Doença de Gaucher (de origem genética, associada a distúrbios lipídicos), doença dos mergulhadores, SIDA/HIV ou o próprio Lúpus Eritematoso Sistêmico, sendo que esses não dependem do uso de corticoesteróides para desenvolver a ONCF.
Como é feito o diagnóstico?
A ONCF normalmente é diagnosticada naturalmente pela história e exame físico, juntamente com exames de imagem complementares.
Normalmente, quando os sintomas começam a se manifestar, a radiografia costuma ser normal e por isso, a Ressonância Nuclear Magnética (RNM) costuma ser crucial para o diagnóstico da doença. Ela costuma ser 99% sensível e específica para a doença!
Contudo, para o acompanhamento da evolução e progressão da doença,a Radiografia costuma acompanhar a RNM.
Em alguns casos em que se suspeita de fratura do osso subcondral, a Tomografia Computadorizada também é bem útil. Nos casos mais avançados, em especial quando há desabamento da estrutura óssea da cabeça do fêmur, a RNM é necessária.
Tratamento:
Os casos em que há colapso da cabeça femoral normalmente resultam na prótese total de quadril. No entanto, quando diagnosticada precocemente, e em casos de menor extensão, a terapia celular junto com a descompressão é bem citada nos estudos atuais.
A descompressão é um procedimento cirúrgico que busca preservar a articulação. Nele, perfurações ósseas são feitas através do colo do fêmur, atingindo a parte mais alta da cabeça, que é justamente onde está o foco da necrose. Com isso, a pressão local diminui (por isso se chama descompressão), a pressão venosa melhora e a circulação sanguínea é facilitada.
Mas, quando feita sozinha, os resultados da descompressão são limitados.
Associada a ela, concentrados do aspirado da medula óssea podem ser utilziados. Eles são parecidos com os aspirados realizados para os transplantes de medula óssea, mas aqui o objetivo é outro. Eles são aplicados diretamente na cabeça femoral, funcionando como um “enxerto” e auxiliando na cicatrização.
Em novembro de 2020, um pesquisador chamado Jeyaraman analisou 6 estudos de grande interesse científico, chamados de metánalise, e concluiu que a terapia celular concentrada (enxerto do próprio aspirado ósseo do paciente) associada à descompressão melhora a função e diminui a área de necrose óssea aos 12 e 24 meses de acompanhamento. Há inclusive a diminuição da necessidade de cirurgia de prótese de quadril e quando ela é feita, há poucas complicações.
O poder do combo descompressão + terapia celular:
Dr. Philipe Hernigou é um autor francês que contribuiu muito para os estudos da área. Em maio de 2018 publicou um estudo de 30 anos de seguimento com 125 pacientes. Esse estudo comparou o concentrado e aspirado de medula óssea com descompressão com somente a descompressão. Ele obteve uma redução da necessidade de prótese total de quadril nos pacientes tratados de 76% para somente 24,3%.
Ondas de Choque Focais (ortotripsia)
Essa é outra técnica muito atraente para o tratamento de pacientes com ONCF. Um estudo publicado em janeiro de 2021, super recente, demonstra a redução da área de edema ósseo, que é a área de retenção líquida com aumento de pressão local, em 98,5% dos casos e houve também uma redução da dor. Os autores recomendam a inclusão dessa técnica não invasiva na rotina de reabilitação de pacientes ONCF.
Concluindo – a pergunta que fica:
Como sabemos, a cirurgia de Prótese Total de Quadril é uma ferramenta primordial nos Casos Graves de necrose, mas ela pode ser adiada, conforme a literatura médica mundial aponta.
Além disso, sabemos que existem muitos quadris brasileiros com chance de reabilitação e preservação da cabeça femoral.
Portanto, a pergunta que fica é: é hora de perder a cabeça ou tentar uma alternativa conservadora para lidar com a ONCF?